Vi nascer um Deus

(Carlos Drummond de Andrade)

Em novembro chegaram os signos.
O céu nebuloso não filtrava
estrelas anunciantes
nem os bronzes de São José junto ao Palácio Tiradentes tangiam a Boa-Nova.
Eram outros os signos
e vinham na voz de iaras-propaganda
páginas inteiras de refrigerador e carro nacional mas vinham.

O governo destinou só 210 mil dólares
à importação de artigos natalinos
avelãs figos castanhas ameixas amêndoas
sóis luas outonos cristalizados
orvalho de uísque em ramo de pinheiro
champagne extra-sec pour les connoisseurs
mas vinham a fome sambava entre caçarolas desertas
e o amor dormia na entresafra
mas vinham e petroleiros jatos caminhões nas BR televisores transistores corretores
descobriram subitamente Jesus.

(Quem adquire a big cesta de natal Tremendous
no ato de pagamento da primeira prestação
recebe prêmio garantido e concorre
na última quarta-feira de cada mês
– números correspondentes aos da Loteria Federal –
a visões como um apartamento um jipe uma lambreta
um lunik um anjo eletrônico
e mais:
ajuda quinhentos velhinhos a provar alegria
pois a Obra de Senectude Evangélica
tem comissão em cada cesta vendida.)

… na manjedoura?
no presépio?
no chão, diante do pórtico arruinado, como em Siena o pintou Francesco [Giorgio?
na capelinha torta de São Gonçalo do Rio Abaixo?
na big cesta de natal?
… repousa o Infante esperado.
As luzes em que o esculpiram tornam-lhe o corpo dourado.
O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino
há um silencioso motor, uma confidência e um sino.

Nasce a cada dezembro e nasce de mil jeitos.
Temos de pesquisá-lo até na gruta de nossos defeitos.

Ministros deputados presidentes de sindicatos
prosternam-se, estabelecendo os primeiros contatos.

Preside (mal) as assembléias de todas as sociedades
anônimas, anônimo ele próprio, nas inumerabilidades

de sua pobritude. E tenta renascer a cada hora
em que se distrai nossa polícia, assim como uma flora

sem jardineiro apendoa, e sem húmus, no espaço
restaura o dinamismo das nuvens. Sua pureza arma um laço

à astúcia terrestre com que todos nos defendemos
da outra face do amor, a face dos extremos.

Inventou-se menino para ser ao menos contemplado,
senão querido (pois amamos a nosso modo limitado,

e da criança temos pena, porque submersos garotos
ainda fazem boiar em nós seus barcos rotos,

e a tristeza infantil, malva seca no catecismo, nunca se esquece).
Assim o Cristo vem numa cantiga sem rumo, não na prece
com pandeiros alegres tocando com chapéus de palhinha amarela
companheiros alegres cantando.
Ó lapinha,

menino de barro,
deus de brinquedo,
areia branca de córrego,
musgo de penhasco,
Belém de papel,
primeira utopia,
primeira abordagem
de território místico,
primeiro tremor.

Vi nascer um deus.
Onde, pouco importa.
Como, pouco importa.
Vi nascer um deus
em plena calçada
entre camelôs;
na vitrine da boutique
sorria ou chorava,
não sei bem ao certo;
a luz da boate mal lhe debuxava o mínimo perfil.

Vi nascer um deus
entre embaixadores entre publicanos entre verdureiros
entre mensalistas, no Maracanã em Pará-lá-do-mapa,
quando os gatos rondam a espinha da noite
os mendigos espreitam os inferninhos
e no museu acordam as telas informais
e o homem esquece
metade da ciência atômica:
vi nascer um deus.
O mais pobre,
o mais simples.

O PROFETA

Num ermo, eu de âmago sedento
já me arrastava e, frente a mim,
surgiu com seis asas ao vento,
na encruzilhada, um serafim;
ele me abriu, com dedos vagos
qual sono, os olhos que, pressagos,
tudo abarcaram com presteza
que nem olhar de águia surpresa;
ele tocou-me cada ouvido
e ambos se encheram de alarido:
ouvi mover-se o firmamento,
anjos cruzando o céu, rasteiras
criaturas sob o mar e o lento
crescer, no vale, das videiras.
Junto a meus lábios, rasgou minha
língua arrogante, que não tinha,
salvo enganar, qualquer intuito,
da boca fria onde, depois,
com mão sangrenta ele me pôs
um aguilhão de ofídio arguto.
Vibrando o gládio com porfia,
tirou-me o coração do peito
e colocou carvão que ardia
dentro do meu tórax desfeito.
Jazendo eu hirto no deserto,
o Senhor disse-me: “Olho aberto,
de pé, profeta e, com teu verbo,
cruzando as terras, os oceanos,
cheio do meu afã soberbo,
inflama os corações humanos!

Aleksandr Púchkin, tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher.

Essa é a função do profeta: inflamar os corações humanos!

Pombo-correio

Os garotos da Rua Noel Rosa
onde um talo de samba viça no calçamento,
viram o pombo-correio cansado
confuso
aproximar-se em vôo baixo.

Tão baixo voava: mais raso
que os sonhos municipais de cada um.
Seria o Exército em manobras
ou simplesmente
trazia recados de ai! amor
à namorada do tenente em Aldeia Campista?

E voando e baixando entrançou-se
entre folhas e galhos de fícus:
era um papagaio de papel,
estrelinha presa, suspiro
metade ainda no peito, outra metade
no ar.

Antes que o ferissem,
pois o carinho dos pequenos ainda é mais desastrado
que o dos homens
e o dos homens costuma ser mortal
uma senhora o salva
tomando-o no berço das mãos
e brandamente alisa-lhe
a medrosa plumagem azulcinza
cinza de fundos neutros de Mondrian
azul de abril pensando maio.

3235-58-Brasil
dizia o anel na perninha direita.
Mensagem não havia nenhuma
ou a perdera o mensageiro
como se perdem os maiores segredos de Estado
que graças a isto se tornam invioláveis,
ou o grito de paixão abafado
pela buzina dos ônibus.
Como o correio (às vezes) esquece cartas
teria o pombo esquecido
a razão de seu vôo?

Ou sua razão seria apenas voar
baixinho sem mensagem como a gente
vai todos os dias à cidade
e somente algum minuto em cada vida
se sente repleto de eternidade, ansioso
por transmitir a outros sua fortuna?

Era um pombo assustado
perdido
e há perguntas na Rua Noel Rosa
e em toda parte sem resposta.

Pelo quê a senhora o confiou
ao senhor Manuel Duarte, que passava
para ser devolvido com urgência
ao destino dos pombos militares
que não é um destino.

(Carlos Drummond de Andrade, em Lição de Coisas) O pombo-correio é tão perdido e sem destino como os militares e governantes da cidade. Qual mensagem ele iria trazer?